Onde está o homem?

Assim que entrei no parque, avistei de longe o caminhador, como o tenho descrito mentalmente nestes mais de vinte anos em que passo por ele nas imediações do bairro. Ele vinha em sentido contrário ao meu, ele é magro, de estatura mediana, usa barba rala e grisalha, anda de sandálias havaianas em passos firmes e rápidos e temos trocado apenas bons dias e boas tardes com acenos de cabeça quando cruzamos um pelo outro, sem que jamais tivéssemos conversado. Em geral, caminho ou corro aleatoriamente pela região umas três vezes por semana, então calculei que para encontrá-lo tão frequentemente seria preciso que ele vagasse pelas ruas mais amiúde do que eu. Cheguei a pensar que ele pudesse ser um daqueles andadores compulsivos que passam suas vidas em trajetos intermináveis cujo sentido se encontra apenas nos seus mapas imaginários. Assim que nos aproximamos, ouvi saracuras cantando suas marteladas sonoras típicas em meio à vegetação do parque e parei procurando vê-las. O caminhador se aproximou de mim e disse: Elas estão lá, - apontou, - perto do cara que mora ali. Como? É, tem um cara que mora ali há mais de dez anos, ele confirmou, - chega mais para frente que você vê. Depois, virou as costas e seguiu adiante em sua caminhada. Permaneci uns instantes tentando divisar algo humano em meio às folhas e troncos, mas nada identifiquei com certeza, apesar de vislumbrar sombras e formatos de uma suposta cabana, um possível bornal de pano e questionáveis restos de fogueira que se desfaziam em verdes e camuflados tons numa segunda mirada. Como era possível uma pessoa viver no meio do parque há tantos anos? Tenho passado por ali centenas de vezes neste mesmo tempo e nada percebera. Os guardas do parque estariam cientes? Do que ele sobreviveria? Seria ele algum sem teto, talvez um drogado, ou um portador de algum transtorno psiquiátrico em busca de isolamento para longe dos seus companheiros de espécie geralmente perturbadores? Não tive coragem de me aproximar e tentei retomar minha caminhada, mas dali em diante o parque se transformara: as árvores me pareciam mais sombrias, os pilares do muro de barras de cimento mais danificados, os sabiás mais melancólicos e a trilha por onde eu pisava estava repleta de pedras, detritos e restos de fezes secas. Desacostumara-me subitamente com aquela paisagem antes familiar, onde agora era possível se esconder um ser humano por dez anos sem que eu o percebesse. Sim, sobrevivemos no mato, mas somente em tribos, porque ianomâmis somos ontologicamente, então aquela longa vida escondida em algum ponto da pequena floresta só poderia ser algum tipo de loucura, sofrimentos de cicatrizes inextinguíveis, alguma miséria social oculta sob meus olhos cegos pela desatenção. Uma fuga, certamente, do mundo, do mesmo mundo em que eu elaborava meus discursos lógicos, redigindo textos supostamente repletos de utilidades e aplicando-me em artes vaidosas de suas novidades, numa ignorância total de que havia uma pessoa escondida entre as árvores de um parque a poucos metros de minha casa e eu não sabia disso há dez anos. A sombra desta ignorância elementar e prolongada entardeceu meu dia antes ensolarado por alguns sentidos da vida e afastei-me a passos rápidos, como se pudesse fugir da insegurança que aquelas folhas e troncos agora inéditos me causavam. Perambulei pelo parque mais um tempo sem conseguir evitar escutar o canto ocasional das saracuras, que permaneciam à distância me lembrando da existência daquele ponto geográfico cujo campo gravitacional distorcia o restante do espaço em sua direção. Voltei por um trajeto diverso para não passar pelo local onde havia um homem no meio do mato e quando abri o portão de casa lembrei do caminhador. Seria verdade o que ele dissera?

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